DANIEL 3: A DESFORRA
Os hebreus ficaram em silêncio. São os outros que falam deles. E por essa razão o testemunho torna-se mais poderoso.
A
calúnia dos caldeus contra os hebreus transforma-se agora em elogio da
parte do rei. A ordem (teem) do rei de adorar a estátua – “Agora, pois,
se estais prontos, quando ouvirdes o som da trombeta, da flauta, da
harpa, da cítara, do saltério, da gaita de foles, e de toda a sorte de
música, para vos prostrardes e adorardes a estátua que fiz, bom é; mas,
se não a adorardes, sereis lançados, na mesma hora, dentro duma fornalha
de fogo ardente; e quem é esse deus que vos poderá livrar das minhas
mãos?” (Daniel 3:15) – responde com uma outra ordem (teem) a de não
caluniar o Deus dos hebreus (v. 29).
Uma
vez mais o rei não ousou dirigir-se directamente a Deus. Face a face
com Deus, ele age e fala como se nada se tivesse passado. Ele tinha
visto quatro homens e a sua atenção foi de forma particular centrada no
quarto (v. 25). No entanto dirige-se a três (v. 26), e o quarto é
ignorado. É verdade que ele começa com uma fórmula que pronuncia a
tradicional oração: “Falou Nabucodonozor, e disse: Bendito seja o Deus
de Sadraque, Mesaque e Abednego, o qual enviou o seu anjo e livrou os
seus servos, que confiaram nele e frustraram a ordem do rei, escolhendo
antes entregar os seus corpos, do que servir ou adorar a deus algum,
senão o seu Deus.” Daniel 3:28. “Bendito seja o Deus...” mas na
realidade ele mantém-se distante e numa postura objectiva.
A
sua teologia está certa. Nabucodonosor define este Deus como o Deus que
salva e como o Deus único. Mas para ele, este Deus só age a favor dos
hebreus. Este Deus não é o seu. Não é Deus no sentido absoluto do termo.
As palavras de Nabucodonosor são bem claras: “Deus de Sadraque, Mesaque
e Abedenego” o que “livrou os seus servos” porque eles “confiram n´Ele”
e colocaram as suas vidas em risco “do que servir ou adorar a deus
algum” (v.28). Para Nabucodonosor a religião de Israel permanece um
fenómeno que se relaciona com um Deus e uma tribo. A atitude dos hebreus
é interpretada como um acto heróico e de grande coragem de um povo fiel
aos seus próprios valores mais do que um acto de fé e confiança no Deus
universal, o único Deus.
Nabucodonosor
não deixa de se reconhecer que este Deus é eficaz, e mesmo mais eficaz
que os outros deuses: “Por mim, pois, é feito um decreto, que todo o
povo, nação e língua que proferir blasfémia contra o Deus de Sadraque,
Mesaque e Abednego, seja despedaçado, e as suas casas sejam feitas um
monturo; porquanto não há outro deus que possa livrar desta maneira.”
Daniel 3:29. No entanto, ele não se compromete. Não se trata de
conversão ou de mudar de religião. Pode-se por instantes ficar
impressionado e até comovido face ao prodígio e à força do argumento;
pode reconhecer-se que ali houve a manifestação de um poder superior e
até único, algo nunca visto, no entanto, refugiar-se atrás do argumento:
“a cada um a sua religião”. A razão desta inconsequência é simples. A
religião é aqui relegada para uma dimensão social com os seus valores e
as suas tradições. Neste caso, cada um fica no que crê, sem correr o
risco de cortar com as raízes herdadas e do confronto.
É
preciso coragem para se tirar lições da verdade e aplicá-las ao
concreto da existência. Todos sabemos que certo hábito de pensar ou de
agir, de comer ou beber pode ser ruinoso para a saúde. Mas no entanto
não se muda. O ser humano é mesmo assim. É muito mais fácil de continuar
no erro, mesmo consciente que se está mal, que romper para se ser
coerente e escolher um rumo segundo a verdade. E quanto mais se está
integrado na sociedade, mais difícil se torna tomar uma iniciativa que
nos leve a romper e assumir princípios que vão contra a corrente das
coisas. Para os reis, para todos os que têm êxito, todos aqueles que
estão instalados no sistema e adquiriram um estatuto de respeito, tal
rompimento com a sociedade nem sequer é a considerar.
Mas
mesmo assim, o rei promulgará um decreto que legalizará a religião
hebraica. A partir de agora, o que ousar caluniar este Deus está sob
pena de morte. A situação inverteu-se. Ao mesmo publico do início da
história são dirigidas as palavras: “Por mim, pois, é feito um decreto,
que todo o povo, nação e língua que proferir blasfémia contra o Deus
de...”(v.29). Antes, este apelo universal obrigava a adoração de uma
estátua; presentemente, exige respeito à religião dos outros (hebreus).
Não
é que Nabucodonosor tenha de repente compreendido o valor da
tolerância. O seu novo decreto não é inspirado pelo cuidado de fazer
respeitar todas as religiões. O que está unicamente em causa é a
religião dos hebreus. Como ficarão as outras? Dadas todas as conquistas
de Nabucodonosor, as religiões mais variadas coabitavam em Babilónia.
“Todos os povos” estão aqui representados. Claro está, a religião de
Israel é a única que é distinta pela sua resistência, e a este título
ela merece uma menção muito especial. Mas o estatuto privilegiado que o
rei confere à religião dos hebreus demonstra que ele reconhece de facto
que esta religião é superiora às outras. Nisto está a razão principal da
sua reviravolta. A promulgação do decreto não se deve ao seu desejo de
ser tolerante mas à descoberta da religião que provoca reviravolta, a
religião que incomoda. A prova disso é que ele acompanha esta ordem de
uma ameaça de destruição. Na realidade, este zelo “missionário” que se
transforma num dedo ameaçador e faz apelo ao “fogo do céu” (Lucas 9:54)
esconde a sua fuga diante das responsabilidades face ao verdadeiro Deus.
Seria falso considerar a
violência religiosa como a expressão de uma profunda convicção. A morte e
a guerra, a tortura da inquisição, bem como todas as medidas de
repressão em nome da religião não são sinais de fé, mas bem pelo
contrário, são sintomas de covardia espiritual e de angústia. Em
compensação desta necessidade ou vazio de Deus que ele sentia, o
“falhado” da religião faz-se Deus a ele próprio e mata. Depois do crime
de Caim, o primeiro crime causado pela intolerância religiosa, a
história dá conta da forma dramática da intolerância e é um aviso. Caim
matou Abel não porque ele estivesse convencido da sua própria verdade e
porque Abel estivesse no erro, mas antes, por causo do fracasso
religioso, por não ter respondido ao apelo de Deus.
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